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Conto - O pequeno ditador, por João Francisco Santos da Silva

Foto do escritor: Alex FragaAlex Fraga


Sexta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de Conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "O pequeno ditador"


O pequeno ditador


Por ser sexta-feira acordou bem-disposto e sentindo-se poderoso. Abriu os olhos e esticou-se na cama. Espreguiçou-se demoradamente e depois escorregou pela colcha de cetim até seus pés tocarem o chão. Em pé diante do espelho não reconheceu o homem baixo e barrigudo de cabelos despenteados. Por um buraco na samba-canção estampada, coçou o “c*” com certo prazer. Percebeu que além de rota, a cueca começava a lhe ficar apertada. Indiferente, emitiu um arroto azedo e barulhento. Agora estava pronto para começar mais um dia.

Saborosa a sensação de poder interferir na vida das pessoas. Sobretudo, gostava de criar tensão e expectativa quanto a decisão que tomaria. Dava-lhe prazer observar a angústia estampada na fisionomia de quem quase lhe implorava pela atenção em alguma demanda. Que interessante é o comportamento humano. Mesmo contrariadas, descontentes e incompreensivelmente lhe odiando, elas se calavam diante de sua presença. Demonstração inequívoca de autoridade, ou temor que as coisas pudessem piorar ainda mais?

Mas o poder é exigente e nem tudo são flores. A massa pode ser hostil e o barrigudo vivia em uma constante queda de braço. Precisava ter pulso firme para manter sua autoridade, porém não queria perder a ternura. Justiça seja feita, ele não era intransigente e sempre dava uma quase nova oportunidade. Tinha como lema: hoje não foi possível, mas...

Outra faceta dolorosa do poder é a solidão. Rosinha, um poodle macho, seu único amigo e parceiro, lhe fazia companhia. Contudo o ditador sentia falta de ter com quem compartilhar seus medos e angústias. Alguém para contar como foi seu dia tendo que tomar decisões vitais para tantas e tantas pessoas.

— O próximo! Gritou encerrando a conversa e sem olhar para cara da velhota sentada a sua frente.

— Mas o senhor não vai receber os papéis? Eu trouxe a certidão, os dois formulários e todos os documentos pessoais solicitados.

— Não é possível receber documentação incompleta. Faltou autenticar em cartório a certidão de vida da senhora.

— Por favor. Se não der entrada hoje no processo não receberei o auxílio esse mês. Disse a mulher quase chorando.

O barrigudo pensou por alguns segundos e lembrou-se que não podia perder a ternura. Depois de olhar para o relógio de parede que marcava 16:50 h, decidiu fazer uma concessão.

— Há um cartório que fica a 10 quadras, caminhando ladeira acima. A senhora vai lá, autentica a certidão e depois volta aqui. Eu saio às 17: 00 hs em ponto!

— Mas, ...

— Próximo!

Assim é a rotina do baixinho barrigudo. Funcionário público incompreendido pelas massas. Se o povo soubesse quanto é difícil ficar o dia inteiro negando auxílio doença, com certeza não teriam a mínima pena dele.

 
 
 

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Guest
Mar 02
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