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Conto - O jantar da Fraternitas Coctine, por João Francisco Santos da Silva

Atualizado: 13 de set.



Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com O jantar da Fraternitas Coctine


O jantar da Fraternitas Coctine


Há certos encontros improváveis, porém possíveis de serem explicados pela psicologia comportamental. Pessoas que aparentemente não possuem nada em comum, se encontram e se aproximam em um estranho jogo de sedução. Para observadores distantes nem sempre é fácil identificar as motivações tanto do sedutor quanto do seduzido. A lista de ingredientes que podem entrar em cena nesse jogo é quase interminável, indo desde beleza, riqueza, poder e lábia de uns, até a exploração da fraqueza, insegurança e solidão de outros.

Intrigante pensar como duas pessoas de poucas palavras e não afeitas a interações sociais conseguem iniciar algo parecido com um relacionamento afetivo. Talvez a atração se inicie em um nível mais primitivo, de pele, de carne ou de cheiro. A chamada química que dispensa palavras inúteis e acende o pavio para o início de uma tórrida paixão.

Entretanto não foi assim que aconteceu com o gerente e o antropólogo. As duas almas se ligaram mais intimamente devido as compulsões que cada um deles carregava dentro de si. Compulsões diferentes, mas ambas tão intensas e perigosas que extrapolavam a preservação de sua própria vida ou a do outro.

No primeiro encontro entre o gerente da conveniência e o refinado professor de antropologia nenhum pavio foi acesso. Nada de amor à primeira vista, muito menos houve o despertar de uma tórrida paixão. Foi um evento inusitado e tinha tudo para dar errado. Contudo, contrariando as expectativas, ao menos para um deles teve final feliz.

A história começou, quando de última hora, o professor em meio a preparação de um risoto de Shitake percebeu que o vinho branco havia terminado. Logo o vinho, ingrediente chave para sua receita. Contrariado, precisou procurar o produto no primeiro lugar que encontrou aberto naquela hora da noite. Foi assim que pela primeira vez entrou na conveniência do posto de gasolina próximo de sua casa e pediu:

— Uma garrafa de Sauvingnon Blanc, por favor!

Do outro lado do balcão, a jovem atendente fez cara de quem não havia entendido o pedido do cliente, um senhor grisalho, com óculos de lentes grossas e com ar de possuir uma inteligência superior à dela. Por alguns instantes o professor ficou esperando em vão pela resposta. E como a jovem não lhe respondia, refez a pergunta. De forma muito educada e sem modificar a entonação, tentando disfarçar toda a sua impaciência com a situação.

— Pode ser qualquer outro vinho branco que você tenha!

Mas, a atendente do caixa, acostumada a pedidos de refrigerante e cerveja, continuou estática, sem entender o pedido do cliente. Foi então, que uma voz masculina e grave rompeu o empasse e atraiu a atenção do professor.

— Aqui está. Esse é um Sauvingnon Blanc chileno. Do Vale de Maule. Até semana passada tínhamos um italiano muito interessante. Disse o gerente entregando a garrafa para o professor.

— Perfeito. Esse vai servir para o que eu preciso. Disse o professor que estava apressado para voltar ao seu risoto e não queria perder mais tempo ali.

— Quase toda semana chegam vinhos novos e que talvez possam lhe interessar.

— Sim. É bom saber. Se precisar eu volto.

O breve diálogo terminou com o gerente falando a frase de praxe.

— Volte sempre!

Com certeza não era em uma conveniência de posto de gasolina que o exigente professor abasteceria a sua adega. Contudo, o professor de antropologia voltou à conveniência várias outras vezes. Nessas ocasiões, as conversas entre ele e o gerente eram sempre sintéticas. Meia dúzia de frases e a garrafa de um vinho qualquer vendida e propositalmente esquecida de levar. Mesmo nas poucas palavras trocadas os dois descobriram algo em comum, o vinho. Enquanto o professor era afeito a degustar vinhos europeus selecionados e de safras específicas, o gerente possuía um paladar mais eclético. Na verdade, além de vinho, lhe ia bem conhaque, vodca, cachaça ou qualquer outra bebida alcoólica. O professor um aficionado por gastronomia, sentia prazer em elaborar pratos exóticos e harmonizá-los com um bom vinho. Já o gerente alcoólatra, e em último estágio da doença, devido a problemas hepáticos, quase não tinha apetite, muito menos interesse pela culinária sofisticada do professor. As breves conversas que os dois entabularam nos seus vários encontros podem ser resumidas nessas poucas inconfidências:

— Eu tenho problema com a bebida desde muito jovem. Por diversas vezes tentei parar de beber, mas o meu vício parece incurável. Já perdi muitas coisas na vida. Não tenho mais família e agora nem mais emprego. Estou cumprindo aviso prévio. Acho que se eu desaparecesse amanhã ninguém perceberia a minha falta.

Talvez comovido pela triste situação do gerente, o professor, sempre tão hermético, se permitiu compartilhar um ou dois de seus defeitos.

— Devo confessar que também possuo uma compulsão. Não por bebida, mas sim por comida. Admito que sou uma pessoa gulosa, não por quantidade, mas por um tipo específico de comida. Não consigo ficar sem consumir carne exótica. Sou capaz de fazer qualquer coisa para saciar essa vontade. E como você, eu também sou uma pessoa solitária. Nunca me casei, não tenho filhos.

Foi somente no último encontro, após saber que o gerente estava cumprindo aviso prévio, e sem conseguir a ansiedade, que o professor de antropologia lhe fez uma proposta.

— No próximo sábado vou fazer um jantar especial em minha casa. Provavelmente essa será a última oportunidade para nos vermos. Quero que você conheça a minha adega, e faço questão que prove um vinho especial, de ótima safra. E não aceito não como resposta!

O convite inesperado pegou o gerente de surpresa. E o fez pensar em porque aquele senhor tão distinto o convidaria para ir a sua casa. Apesar do professor já ser um freguês habitual, quase sempre trocavam apenas uma ou duas palavras. O gerente já havia gasto todo o seu parco conhecimento de enólogo. Sendo que quando falava sobre outras bebidas, era nítido o desinteresse do cliente de cabelos grisalhos e com ar de intelectual. A ideia do que poderia ser tratado na intimidade da casa de um velho solteirão lhe incomodava um pouco, mas estava hipnotizado por experimentar o conteúdo da adega do professor. Saciar a sua compulsão por bebida valia qualquer risco. A decisão estava tomada.

No sábado pela manhã o professor acordou ansioso e preocupado por dois motivos. Ele seria o anfitrião do mês e encarregado de preparar o jantar especial para sua confraria da carne. Todos os membros muito exigentes. Sendo obrigatório que ao menos um dos pratos do jantar fosse à base de carne exótica. O professor pretendia experimentar uma receita diferente, adaptação de um prato clássico. E como alguns dos membros da confraria eram um tanto ortodoxos, poderiam não reagir bem a sua proposta inovadora. A outra preocupação era que seu convidado, o gerente da conveniência, não comparecesse e isso poderia atrasar os preparativos do jantar da noite.

O som da campainha informou a chegada de seu convidado especial. No início, meio intimidado, demorou em aceitar a primeira taça do Porto. Mas, passado algum tempo as várias outras taças lhe desceram fácil e rápido. Agora chegou o grande momento, hora de conhecer a adega. O gerente já estava trôpego pela bebida. A escada íngreme que levava ao subsolo era um perigo. Fácil para cair e quebrar o pescoço.

Finalmente chegou a hora do jantar. E como em qualquer confraria seus membros tinham alguns ritos e códigos a serem seguidos ao longo da noite. Os confrades primeiro degustavam a entrada, depois provavam o prato principal e por último a sobremesa. Todos os pratos eram acompanhados por vinhos que buscavam a harmonização ideal. Durante todo o jantar, os convivas conversavam apenas sobre amenidades. Somente após concluída a ceia é que se iniciava a discussão analítica a respeito da refeição degustada. E dependendo do efeito positivo ou negativo poderia desencadear uma sabatina de perguntas para descobrir os segredos do prato, ou, no pior cenário, uma saraivada de críticas.

Ansioso por saber a opinião dos confrades, o anfitrião abriu logo o jogo.

— O prato principal foi um ancho de terneiro novo.

 Mas, o que intrigava a todos os convidados era a entrada. Nela estava o pulo do gato e o desafio da noite. E o professor não se fez de rogado. Explicou de forma displicente, com um pouco de falsa modéstia, como se fora algo simples a experiência gastronômica cuidadosamente planejada e executada por ele.

— Torradinhas integrais com patê de foie gras. Detalhe, o patê não era nem de pato, nem de ganso. É de fígado de espécie exótica.

  — Notaram a sútil diferença? Sim?

 Depois de uma breve expectativa, que para o vaidoso professor lhe pareceu interminável, vieram os elogios e a curiosidade para conhecer mais sobre o processo de confecção da iguaria. Sua receita havia sido totalmente aprovada. Agora todos queriam saber o segredo e mais detalhes sobre a preparação do prato.

— Muito simples! Usei somente ingredientes frescos. Fígado inchado e previamente infiltrado com bastante vinho porto. Depois soquei externamente o fígado com o espécime ainda vivo. O resto da receita é a de um foie gras tradicional.

O jantar foi um completo sucesso. E ao menos até o próximo encontro, os membros da FAE, a Fraternitas Anthropophagia Coctine, haviam saciado a sua gula por carne exótica.

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Guest
Jun 29
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👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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Guest
Jun 29
Rated 5 out of 5 stars.

Muito bom. Parabéns

Gisele Dutra - Rio Verde MS

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