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Conto - O cemitério das pessoas mortas, por João Francisco Santos da Silva

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 14 de fev.
  • 3 min de leitura

Sexta-feira no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "O cemitério das pessoas mortas".


O CEMITÉRIO DAS PESSOAS MORTAS


Sempre ao final da tarde, quem conseguisse ver, veria um homem ansioso transpor o portão e seguir apressadamente pela alameda principal. Caminhando rápido, sem parar e com pouco tempo, o portão de entrada e de saída fecharia em menos de uma hora. Parecia estar atrasado para um compromisso que nunca se cumpria. Homem corajoso e convicto de suas verdades, necessitava ter aquele encontro e não desistiria até ficar face a face ao menos com um deles que fosse.

Entre a vida e a morte há uma linha tênue, quase imperceptível. Portões de cemitérios demarcam imprecisamente a fronteira entre os dois mundos. Os restos lá dentro deixados, último espólio físico de ex-vivos, podem virar pó ou tornarem-se entes sobrenaturais, sendo essa transformação mera questão de perspectiva. Por isso, muitas pessoas lhe ridicularizariam por ele procurar coisas que não existem. Enquanto outras, ainda que acreditassem, não teriam coragem para buscá-las.

O homem ia até o centro do cemitério e lá se sentava por poucos instantes, o suficiente para decidir o rumo a tomar. Ainda iludido pelo passado, supunha não dispor de tempo para percorrer todo o campo santo. Então, escolhia aleatoriamente uma das quadras para iniciar a procura do dia. Sua busca incessante se baseava na crença inabalável da existência deles. E só prosseguia por ser teimoso pois, até então, todos os seus esforços foram malsucedidos. Sempre soube que todos eles permaneciam naquele tipo de lugar. Mas, às vezes dúvidas invadiam a sua mente. Ele podia haver se equivocado de local, ou talvez, estivesse utilizando uma técnica incorreta para encontra-los?

Invariavelmente começava pelos túmulos com lápides contendo frases de efeito. Preferia as com poemas de escritores conhecidos. No seu íntimo queria ler algo que confirmasse sua crença. Porém, a maioria dos poemas, fossem os originados em reflexões existencialistas mais profundas, ou aqueles mais diretos e materialistas, lhe esbofeteavam a cara com ideias contrárias as suas. Não conseguia concordar com Augusto dos Anjos, em que cemitérios serviriam apenas como meros depósitos de ossos e carne apodrecida:

“Numerar sepulturas e carneiros,

Reduzir carnes podres a algarismos,

Tal é, sem complicados silogismos,

A aritmética hedionda dos coveiros”!

(Trecho extraído do poema VERSOS DE UM COVEIRO de Augusto dos Anjos).

Muito menos com o pensamento de Ricardo Gonçalves, para o qual a morte não passava de um monótono e interminável sono:

“Ei-lo o túmulo simples que ambiciono

Para deitar a carne fatigada,

Para dormir o derradeiro sono”.

(Trecho extraído do poema TÚMULO de Ricardo Gonçalves)

Em geral, depois de ler esse tipo de poema, sentia-se ainda mais irritado. Então, permanecia diante da lápide olhando fixamente para a foto do morto. O encarava bem nos olhos, como se o desafiasse para um duelo. Depois de algum tempo, sem sucesso com esse tipo de provocação, passava para algo mais grosseiro. Mas antes olhava para os lados verificando se havia alguma testemunha indiscreta por perto. Uma vez constatado estar sozinho, bradava os piores impropérios provocando o dono da foto para que aparecesse diante dele, se tivesse coragem. Depois de esbravejar inutilmente, ia para o próximo túmulo. Nos grandes mausoléus ele enfiava a cabeça lá dentro na vã tentativa de atrair um eventual morador.

Próximo a esgotar seu suposto tempo de permanência, retornava agitado em direção ao portão de saída. Vinha distraído, resmungando com ele mesmo, angustiado por mais uma busca frustrada e com um pensamento obsessivo na cabeça:

— Como é possível que em um cemitério só tenha pessoas mortas e nenhum fantasma?

Caso não estivesse tão distraído em seus pensamentos, ele teria visto dois rapazes conversando e que apontavam em sua direção.

— Augusto! Agora você acredita em mim? Eu sempre lhe falo que há um fantasma que vem todas as tardes no cemitério e fica atrapalhando o sono dos mortos!

— Pois é. E eu que não acreditava em fantasmas! Respondeu o outro rapaz assustado e com a face pálida.

Os dois seguiram conversando, enquanto caminhavam cemitério adentro.

— Ainda bem que ele mora em outro cemitério e sempre sai cedo daqui. Imagina se ficasse fazendo essa algazarra à noite inteira. A gente nem conseguiria dormir sossegado. Disse Ricardo, antes de se despedir do companheiro e transpor a laje que recobria seu túmulo.

 
 
 

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Guest
Feb 16
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