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Conto - Noite de Rei, por João Francisco Santos da Silva

Foto do escritor: Alex FragaAlex Fraga


Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de Conto com o médico clínico geral, acupuntura e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva. com "Noite de Rei".


Noite de Rei


Quem passasse por ali durante o dia veria apenas uma espelunca de parede encardida e com a tinta descascada. “Gran Café Magestic” esse era o nome do pardieiro escrito em letras vermelhas e garrafais na sua faixada. Era uma casa noturna e a luz do sol em nada favorecia e ainda lhe roubava todo o glamour. Entretanto, à noite tudo mudava. A porta se abria e luzes fracas e coloridas iluminavam parcamente o interior do recinto. A ideia era compor uma atmosfera romântica, meio na penumbra, perfeita para os amantes de uma única noite. Amores fugazes, mas marcantes.

Ali quase tudo era permitido. O peão de obra, por algumas horas, podia se sentir como um rei. Alguns mais gulosos e com mais dinheiro preferiam brincar de sultão em seu pequeno e temporário harém. Mas, vez por outra aparecia um frequentador mais ingênuo e menos experiente na arte da sacanagem. O tipo de cliente que nem sempre compreende a proposta “fast food” oferecida no “Café”. Importante dizer que o estabelecimento proibia o consumo na modalidade “delivery”. Isso poderia acarretar em um desabastecimento de produtos na casa.

Desde que Suellen precisou sair, ele permaneceu sentado no meio fio a sua espera. Da noite passada, havia restado somente o bolso vazio, a cabeça latejando e a garganta seca do vinho barato. Ele ainda sentia o cheiro adocicado e enjoativo do perfume dela, agora acrescido com o fedor de seu próprio suor. O sol estava de rachar. Já era mais de meio dia. Fazia horas que estava ali. Sua amada Suellen, alma bondosa, saíra às cinco horas da manhã, e até agora nada de notícias. Ela disse que queria se despedir da vozinha paralítica e já quase cega.

— Pego uma muda de roupas, dou um beijo na velhinha. Depois volto para irmos juntos para Terenos!

Foi o combinado. Ele lembrava. Ela estava ansiosa para conhecer a sua família. Ia ser o primeiro almoço de domingo com todos os seus parentes reunidos. Foi a primeira vez que chamou uma namorada para sua casa. Com certeza ia ser uma grande surpresa para todo mundo. Seria um acontecimento muito comentado. Todos iriam gostar de Suellen. Certamente desejariam saber onde encontrou aquela mulher especial. Moça humilde, com um coração imenso.

— A vozinha, coitada, toma muitos remédios, todos tão caros! Disse ela suspirando e com os olhos úmidos.

A situação da avó de Suellen lhe cortou o coração. Não tinha como não ajudar. No início, timidamente, ela não quis aceitar. Então ele insistiu um pouco, na verdade não muito, e ela pegou o dinheiro.

Suellen partiu com os votos de melhora para vozinha. Com ela também foram seus últimos trocados ganhos em uma dura semana de trabalho na obra. Agora a sua bunda já estava quadrada e doendo de tanto tempo ali sentado. Não foi desta vez. A pé para casa dava para chegar até à noite. Amanhã é segunda feira: bicicleta, marmita e carrinho com massa. Pensou o rapaz frustrado e já sem esperança de rever a amada. Nesse momento, seus pensamentos foram interrompidos pelo toque do celular.

— Meu Rei, minha vó internou. Empresta mais cem? Pode me passar por PIX. Ah! Meu amor, não esqueci. Próximo domingo vamos para Terenos para conhecer sua família!

— O nome que está no PIX é o do meu tio. Eu não entendo muito de finanças e é ele cuida para mim dessa parte de dinheiro. Beijo, meu rei.

Voltou andando para casa debaixo do sol escaldante. Com calo no pé, mas com o coração leve. Que coisa boa estar apaixonado. Sempre soube que Suellen tinha um bom motivo para não ter voltado. A vozinha internada e ele querendo egoisticamente a atenção da moça. Com sorte até sábado conseguiria o dinheiro para o tio de Suellen. Uma semana de trampo na obra deveria ser suficiente para prover essa ajuda humanitária.

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