Conto - Maria José, por João Francisco Santos da Silva
- Alex Fraga
- 14 de set. de 2024
- 3 min de leitura

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "Maria José".
Maria José
Relendo a ficha de Maria José pensei como um prontuário é impessoal e omite as coisas que talvez sejam as mais importantes. Me dei conta disso separando algumas fichas antigas que seriam transferidas para o arquivo morto da clínica.
Profissão: pensionista. Não. Ela era lavadeira. Trabalhou por mais de quarenta anos nesse ofício. E tinha muito orgulho do que fazia. Com seu trabalho pode sustentar a casa e os seis filhos. Ela tornou-se pensionista depois que o marido morreu. Ele era policial militar. Foi assassinado durante uma briga de bar. Nunca perguntei para ela o que ele estava fazendo no bar. Mulher que gastava apenas as palavras necessárias. Talvez não tenha achado importante contar essa parte da história.
Estado civil: viúva. Mas, agora fiquei curioso para saber o que o marido estava fazendo no bar quando foi morto. Mereceria um puxão de orelha da dona Maria José por essa curiosidade indiscreta. O importante é que ela desde pequena queria se casar e ter uma família. Sonhava também em ter uma casa própria. Mas, nessa parte da ficha não há lugar para colocar os sonhos da pessoa. É feita só para as informações de identificação. Papeis de identificação, paradoxalmente, desconsideram a identidade e não qualificam a vida da pessoa.
Escolaridade: não alfabetizada. Não está na ficha, mas, ela muito pobre, quando criança não foi à escola. Não sabia ler, nem escrever. Depois cresceu, casou jovem, teve os seis filhos e ficou viúva. Difícil estudar nessas condições. Difícil a vida para quem não estudou. Como eu admiro a dona Maria José. Conseguiu educar os seis filhos. Todos terminaram a escola. O mais velho até conseguiu um bom emprego como funcionário público. Foi seu filho mais velho quem lhe deu uma casa. Ela casou, teve filhos e finalmente uma casa própria. Apesar de nunca ter sido ambiciosa, com a casa atingira o seu projeto de vida. Não falava com orgulho de suas conquistas, mas com gratidão.
Hábitos de vida. Hoje me parece meio idiota as perguntas que lhe fiz. A senhora era sedentária? Como uma lavadeira teria sido sedentária? Ela morava na parte baixa da cidade, enquanto toda sua clientela vivia na parte alta. Todos os dias subia e descia as ladeiras ao menos duas vezes. Primeiro buscava as roupas sujas e depois voltava para entrega-las limpas e passadas. Caminhava mais de 10 quilômetros por dia carregando vários quilos de roupa na cabeça. Fez isso por mais de quarenta anos. Foram tempos de muito trabalho e privações.
Antecedentes obstétricos: quantas vezes a senhora ficou grávida? Perdeu algum filho? Etc. Posso até vê-la respondendo essa pergunta. Infelizmente, há alguns anos o
filho primogênito morreu de câncer. Quando falava desse seu menino, a voz de Maria José continuava firme, contudo, nesses momentos de recordação materna seus olhos umedeciam.
História da doença atual: Conheci dona Maria José já idosa. Estava com mais de 80 anos e há tempos o coração dava mostras de estar enfraquecendo. Caminhava com alguma dificuldade, a idade, o sobrepeso e a artrose nos joelhos lhe dificultavam a mobilidade. Lembro que ela nunca reclamava da vida, nem das mazelas presentes, tampouco das já vividas. Sua voz era firme, de mulher decidida, e sem vacilações.
Hábitos de vida: não fumava não ingeria bebidas alcoólicas.
Cansei dessa ficha de atendimento. Ela vai ser guardada no arquivo morto. O tempo de arquivamento é uma burocracia legal. A memória de Maria José não está registrada nessa ficha. E a permanência dela transcende o tempo burocrático. Na verdade, esse prontuário não é o local para eu registrar minhas últimas impressões sobre Maria José.
Há biografias singelas como a de Maria José, que não há palavras escritas ou faladas que possam descrevê-las. Assim como não há títulos, condecorações, agradecimentos ou muito menos elogios que Maria José quisesse ou necessitasse. Lavadeira e passadeira. Criou os filhos com dificuldade e dignidade. Honrou a profissão que lhe permitiu realizar tudo a que se propôs na vida. Grande mulher, em qualquer profissão ela teria sido vencedora. Para mim, a Maria José lavadeira que eu tive a oportunidade de conhecer, foi uma professora e terapeuta. Mesmo iletrada, o seu exemplo de vida atirava em minha cara tantos ensinamentos. Em suas visitas ao meu consultório, fui tratado (não curado) de minha arrogância e aprendi com seu exemplo que o que vale são as ações e não as palavras. Gratidão Maria José.
❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️
Diferenciado. Parabéns.
Luciana Alencar
Fiz do Iguaçu PR