top of page

Conto - Desconhecidos Íntimos, por João Francisco Santos da Silva

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 29 de mar.
  • 2 min de leitura

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "Desconhecidos

íntimos".



DESCONHECIDOS ÍNTIMOS


Os encontros ocorreram no inverno. Ele ia de expresso. Descia do coletivo e atravessava para o lado esquerdo da canaleta do ônibus. O mundo do qual ele fugia permanecia à direita da via expressa. Não caminhava muito, uma quadra, no máximo duas. Seguia rápido respirando o ar gelado da noite. Incomodado pelo frio e amedrontado por estar ali àquela hora. Entrava pelo portão lateral e ao fim de um corredor estreito chegava na casa dos fundos. Hoje ele não se lembra de quase nada. Embora distante, o tempo não é o motivo pela falta de lembrança. Coisas irrelevantes e sombrias são facilmente esquecidas. Só ficou a recordação de descer do ônibus, sempre tarde da noite, respirar o ar frio e chegar em um quarto dos fundos. O que ocorria lá dentro tornou-se nebuloso. Restou apenas o sentimento. Sentia-se vazio ao chegar e ainda mais esvaziado ao sair.

A casa da frente ela frequentava por obrigação. Era na dos fundos em que ela desaparecia. Lá ficava quase invisível para o mundo. Vida banal, devia ter alguns sonhos bem guardados para não serem descobertos nem por ela mesma. Algumas noites, poucas, deixava a porta de casa destrancada. Morava em dois cômodos, quarto e banheiro sem box. Ele chegava quieto. Quase não abria a boca e também parecia não querer ouvi-la. Ela não fazia a mínima ideia do que conversar com ele. Melhor assim, sem assunto e sem conversa.

Se um dia ele a conheceu, no outro já deve tê-la esquecido. Ela também nunca soube quem ele era. Nada de nomes ou de ocupações. Ambos tinham a pele muito branca. Ela não sorria, ele também não. Ela parecia apagada e ele não a acendia. Tampouco ela lhe entusiasmava. Foram cumplices, por algumas poucas horas, de noites mal divididas. Os dois hermeticamente fechados, nada compartilhavam. Junção parcial de corpos. Desinteresse quase total de um pelo outro. Poucas aspirações de ambas as partes. Um breve instante de prazer, talvez nem isso. Depois os corpos não se queriam mais. Largados na mesma cama, mal baixava a respiração, e já iam esfriando, meio úmidos e apáticos. Poderiam ficar o tempo que quisessem. Tinham toda a noite a sua disposição. Mas, desesperadamente precisavam se afastar. Preferiam o frio da noite, a prolongar aquela situação deprimente.

Se encontraram algumas vezes. Por que alguém voltaria a experimentar aquilo novamente? Talvez por solidão, intensificada ainda mais depois de cada um daqueles encontros vazios. Poderiam ter se conhecido. Porém, não desejaram se conhecer. Que

importa se ela era babá ou manicure, e se a casa da frente pertencia a sua patroa? Ele poderia ser um frentista de posto de gasolina, ou até mesmo um procurado pela polícia? Melhor não saber de nada. Ambos não tinham a mínima expectativa em relação ao outro. Apenas se encontravam. E mesmo se desconhecendo, sabiam que para estarem ali, um devia ser tão precário quanto o outro.

As vistas noturnas logo cessaram. Não houve adeus. Não trocaram informações. Nunca mais se viram. Não sentiram saudades. Não houve separação, pois nunca estiveram juntos. Apenas conseguiram o intento de multiplicarem a solidão um do outro.


 
 
 

1 Comment

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
Guest
Mar 29
Rated 5 out of 5 stars.

👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾❤️

Like
bottom of page