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Conto - Carlinhos, José e eu, por Rogério Fernandes Lemes

Domigo no Blog do Alex Fraga é dia de textos e contos do poeta e escritor de Dourados (MS), Rogério Fernandes Lemes, com Carlinos, José e Eu.


Carlinhos, José e eu Rogério Fernandes Lemes

Da última vez que estive com Carlinhos comentei sobre um de seus poemas, o “Privilégio do mar”. Ele demonstrou certa indiferença e continuou, inerte, a contemplar o concreto armado dos imponentes e corroídos edifícios à sua frente. “Talvez fosse melhor virar-se e contemplar o mar, Carlinhos”, disse a ele. “Você perde de ver as pessoas em suas zonas de conforto, banhando-se na fétida praia da solidão. Estão bem atrás de você e, por vezes, causam-lhe estragos. A última insanidade custou vinte e cinco mil ao erário público no conserto de seus quadrados óculos”. O poeta continuava imóvel, sem dizer uma só palavra. Não era birra e nem mesmo indelicadeza. Era sensibilidade com miséria humana. Dali, a uns duzentos metros, ele contemplava “mil corpos labutando em mil compartimentos iguais” alheios, quem sabe, à existência dos horrores de um conflito mundial. Ele não estava em um terraço confortável. Estava era pegando gripe, ao relento. Sol, chuva, maresia, ventos alísios e, vandalismo. Com todas essas mazelas pontuadas Carlinhos, se quer, ousou declamar. Seu silêncio era tão igual aos corpos que nem cervejas do alto de seus edifícios. Dei de costas a Carlinhos e contemplei a infâmia do mundo. E agora, José? E agora, Carlinhos? Poderá o homem salvar-se de si mesmo? A indiferença e altruísmo habitam a mesma casa? Poderia o homem, inconformado com sua mortalidade, atingir o absoluto? A felicidade a qualquer custo? Silêncio. Apenas o dançar frenético e interminável das ondas às suas costas. Um ou outro aproximaram-se um pouco desconfiados sentindo-se traídos pela ignorância por não saber quem era, quem foi e o que escreveu Carlinhos. Talvez para não perder a viagem e disfarçar suas carobas, aquelas pobres almas registraram seus fantasmas ao lado do metálico, gélido e indiferente Carlinhos. Continuei ao seu lado. Firme e quase inerte como ele. Ambos respirando a brisa do oceano, fatigados pela vida, mas com o privilégio de estar ali, naquele instante e lugar. Passados alguns minutos percebi uma trégua. Carlinhos espreguiçou-se e me disse: qual é? Percebi então ser o momento para puxar assunto e falar de coisas irrelevantes. Era um bom começo. Onde você mais gosta de ficar Carlinhos? “Fundeado na baía em frente da cidade”, foi a resposta. Pensando cá, com meus botões, apenas assenti e perguntei-lhe o que ele pensava sobre a vida; sobre tudo. “A vida seria incerta... improvável...”. Se? Quis eu saber. “Se houvesse um cruzador louco, fundeado na baía em frente da cidade”. E eu, um desavisado, pensei que Carlinhos respondia a minha pergunta sobre onde ele gostava de ficar. Foi então que entendi um pouco mais sobre a vida dos poetas. Eles não pedem e nem precisam ser entendidos ou explicados. Carlinhos apenas faz o que nasceu para fazer: ficar vivo entre nós, assim como todos os poetas mortos, que até uma sociedade têm. Não importa se Carlinhos se senta de costa para o mar, se ignora minhas ignorâncias, se suporta pacientemente seus algozes, se contempla a indiferença dos fatigados beberrões. Importa é que Carlinhos vive. Importa é seu privilégio do mar. Importa suas provocações aos Josés e Marias. Importa é que Carlinhos é brasileiro. E ainda que seus vândalos custem mais de cem mil em manutenção de seus quadrados óculos, Carlinhos não desiste nunca. Continua firme como eu. Até quando? Isso não importa, pois existe um vândalo muito pior a caminho e que, ao encontrar uma pobre alma, com sua foice em riste, pergunta: E agora, José? Quem o livrará da ira futura?


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