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Conto - Café, livro e quietude, por João Francisco Santos da Silva

Foto do escritor: Alex FragaAlex Fraga

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista, poeta e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "Café, livro e quietude"


Café, livro e quietude


Encontros armados por amigos podem não dar certo. Ao menos para ela foi assim. Chegou em casa antes das 22 horas e com a certeza que desperdiçara sua noite. Porém, de consolo, ainda dava tempo para a fazer algumas de suas coisas prediletas. Tomou um banho quente. Vestiu um pijama velhinho e gostoso, daqueles para dormir sozinha. Até pensou em tomar o último café da noite, mas, optou por um chá de erva cidreira meio sem graça. Acomodou-se confortavelmente na cama, alcançou o livro sobre a mesa de cabeceira. O abriu na página marcada na noite anterior, mas, não o leu. O chá de erva cidreira não fora suficiente para acalmá-la. A cabeça ainda estava presa ao seu encontro frustrado.

Ela precisava entender melhor o desastre que fora o encontro arranjado. Pulou da cama, foi até a escrivaninha e pegou um papel. Um guardanapo com algumas palavras escritas que lhe eram muito significativas. Releu o pequeno texto escrito por ela mesma.

— Ele não entendeu nada. Ou então, nem se deu ao trabalho de ler o que escrevi. Mesmo eu tendo rabiscado rapidamente e com aquele barulho todo, minha letra ficou legível. Por que no final do jantar ele pediu de sobremesa um mousse de chocolate? E para aguardar a conta, um expresso de máquina com adoçante? Ou quem sabe ele fez aquilo para me provocar? Ela pensava em voz alta, enquanto olhava fixamente para o guardanapo, como se fosse um hieróglifo e em vão tentasse decifrá-lo.

A verdade é que foi um péssimo começo. Pessoas queridas, mesmo com as melhores intenções, algumas vezes metem os amigos em situações constrangedoras. Elas nem sempre conseguem perceber que há pessoas, que como ela, gostam de ficar em casa. E que ter seu próprio espaço interior não significa ser solitária. Ignoram isso e planejam encontros “casuais” com os conhecidos disponíveis, e ainda afirmam que ele “é a sua cara”.

Justiça seja feita, o local marcado não favoreceu em nada para o sucesso do encontro. No restaurante havia um irritante barulho de vozes. Para piorar a música ambiente estava muito alta. Isso obrigava as pessoas a falarem cada vez mais alto para serem compreendidas. Ela precisava fazer muito esforço para conseguir entender o que o companheiro de mesa lhe falava. Ainda mais difícil foi se manter ativa na conversa. Ela conversava baixo por natureza, e sua audição também não era das melhores. Na verdade, não gostava de falar em voz alta. E ali, sentia que precisava gritar para ser ouvida.

Cansava-se com a energia dispendida para entender e acompanhar a conversa em tais condições.

Como tudo sempre pode piorar, o seu pretendente arranjado falava sem parar. Ela foi obrigada a ouvir um monólogo que durou pouco mais de uma hora. Nessas situações adversas, costumava aplicar uma técnica bastante simples. Em geral, apenas sorria e mexia automaticamente a cabeça concordando com o seu interlocutor. Mas, às vezes o seu tédio era tanto, que depois de algum tempo seguia viagem para outro lugar bem distante dali. Naquele dia ela já estava lá neste seu refúgio mental, quando foi convencida a retornar. Escutou seu nome, no início distante, como o som do despertador que toca sempre antes do que queremos.

— Ah! Eu? Você perguntou do que eu gosto?

— Desculpe. Não consigo falar mais alto.

Fez um gesto com a mão, sinalizando para esperar um pouco. Escreveu algo no papel e o entregou para o sujeito falante sentado à sua frente. O companheiro de encontro passou rapidamente os olhos pelo texto e depois balançou a cabeça em sinal de concordância. Então dobrou o papel e o deixou sobre a mesa. Em seguida saltou uma grande gargalhada. E seguiu exatamente como antes, rindo alto e falando sem parar. Porém, deste momento em diante a sua conversa não mais lhe incomodava. Agora ela já estava bem longe dali, tinha partido de volta para sua Pasargada mental.

Fazendo o balanço da noite, realmente não tinha a menor possibilidade de dar certo. Durante o jantar só ele falou e além do mais, falava muito alto. Qual era mesmo o seu nome? Impressionante constatar que entre o boa noite da chegada e o da saída, nem o nome do indivíduo ela havia guardado. Assunto superado, agora podia voltar para a cama e para seu livro de cabeceira. Antes, porém, resolveu que merecia uma última xícara de café.

E o que ela escreveu no guardanapo? Um pouco do que em sua visão seria um mundo, longe de perfeito, porém, mais simples e gostoso de viver:

“Quero quietude, e quero queijo. Gosto tanto de queijo com banana da terra e canela, quanto preciso de meu tempo e espaço, sozinha comigo mesma. Adoro café quentinho, fresco, acabado de coar. Também gosto de livros e leituras. De viajar sem sair. De ficar, mesmo não estando. De ouvir pessoas queridas conversando. Falando de coisas da vida. Mas, como café que só é bom bem quente e sem açúcar, assim também é: ouvir sem precisar falar. Afinal, palavras nem sempre são para serem ditas. Elas escritas, lidas ou ouvidas, também são muito saborosas”.

 
 
 

1 Comment

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Guest
Jul 13, 2024
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Lindo. Só não gostei da foto, a xícara em cima do livro, menosprezando o livro, colocando peso quente. O livro é muito frágil. Acabou com o livro.

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