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Conto - As duas chaves, por João Francisco Santos da Silva

  • Foto do escritor: Alex Fraga
    Alex Fraga
  • 16 de ago.
  • 3 min de leitura
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Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "As duas chaves".


As duas chaves


A atenção da mulher com lenço vermelho na cabeça e dois dentes de ouro na boca voltou-se para a transeunte menos interessante da rua. Uma moça bem jovem, recém saída da infância. Ela caminhava pela rua central, distraída e sem tirar os olhos do chão. O vestido de malha desbotado, começando a puir, alertava não valer a pena abordá-la. Mas mesmo assim, a cigana a abordou. Algo a atraia naquela moça encabulada e cabisbaixa. Por algum motivo a cigana precisava dar-lhe as más notícias sobre seu destino. Talvez a moça, mesmo ainda tão jovem, já suspeitasse a que estava destinada. Bastava olhar para a mãe, as tias ou para sua irmã mais velha.

Sem pedir licença, a cigana segurou ambas as mãos da moça, que mesmo desconfortável com a invasão de seu corpo, foi incapaz de esboçar qualquer reação. Guiada por bons propósitos, a cigana em transe ouviu toda a sentença. A sina como a de tantas iguais a ela será o outro. Não há como evitar o encontro marcado. Cachaça não é boa coisa. Entorpece a mente. O homem é primitivo, pior que animal. É assim que tem sido e assim será. Ela não decidirá nada. Sua saída será por necessidade. Uma noite, mais uma violação. Seria ela ou ele, não haverá escolha, questão de sobrevivência.

Por ser de graça, a comunicação com o outro lado fluiu de maneira direta e natural. A cigana não precisou usar qualquer palavra mística ou floreios para valorizar o seu trabalho ao entregar a sorte da jovem. E assim traduziu a mensagem recebida:

Qual a idade da mocinha? Quatorze anos. Vejo próxima a hora de tua imolação. Muitas e poucas mudanças ocorrerão em tua vida. Mudarás de endereço, mudarás de dono, mudarás de corpo e de cabeça. Vejo uma cova e um animal dentro dela. Vejo uma outra mulher, essa não serás tu mais. Depois de feito o que tens que fazer não adiantará dar-lhes explicações. Eles não te compreenderão. Lembra-te que se puderem não te deixarão ficar com as duas chaves. Para que fiques com as chaves, deves parar de olhar para o chão. É possível que as fechaduras, por desuso, tenham estragado e seja tarde demais para usares tuas chaves. Porém, muitas vezes apenas enferrujam e voltam a abrir as portas.

Vinte anos depois. Chega. Puro instinto de preservação. Era ele ou ela. Enterrou o homem vivo. Cova rasa, mas suficiente para cobrir o algoz e sufocá-lo. Não aguentava mais os abusos do cachaceiro. Morreu completamente bêbado, depois de estuprar mais uma vez a mãe de seus filhos. Teve a morte que merecia, empapado na lama formada pelo vômito e urina misturados a terra recém revolvida.

Assim que despejou a última pá de terra e terminou o enterro de seus males, uma figura resgatada do passado surgiu diante dela. A mulher de lenço vermelho na cabeça e com dois dentes de ouro nada lhe disse. Apenas lhe indicou com o dedo a direção da estrada de terra que passava em frente ao casebre. Uma trouxa de roupas, oito crianças e a barriga prenha a quase nascer o nono, foi o que deu para levar. Precisou tirar os olhos do chão para seguir em frente sem cair. Não tinha nenhuma certeza, tentava apenas levar as duas chaves prometidas pela cigana, a da liberdade e a da sanidade. Quem sabe ainda conseguisse abrir as portas?

Não causou qualquer surpresa a demora para encontrarem o corpo enterrado em uma cova no fundo do quintal. No casebre caindo aos pedaços, habitado por pessoas pobres, quase invisíveis, só foram dar pela falta da família depois de dois meses de aluguel atrasado. Foi quando se lembraram que há tempos não viam o bêbado cambaleando pela estrada no final tarde, nem ouviam os gritos da mulher misturado ao choro das crianças.

 
 
 

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