Conto - As caçadas de jagunço, por João Francisco Santos da Silva
- Alex Fraga
- há 23 horas
- 3 min de leitura

Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "As caçadas de jagunço".
AS CAÇADAS DE JAGUNÇO
Bicho solto, com as costelas à mostra, na solidão das barrancas do Piquiri, Jagunço pagava o preço por seus sonhos. Caçador inveterado, a fome obrigou-o a aventurar-se em pescarias. Sem habilidade para a pesca e cada vez mais fraco resignou-se a voltar para a fazenda. Porém as semanas de mato e de fome o tornaram inútil para seu dono fazendeiro.
O cachorro fujão foi posto num saco de linhagem e desertado na porta da delegacia de polícia. Cidade do interior, quase sem presos, o delegado por pena adotou o cachorro magricela. Preso na delegacia, Jagunço experimentou um período de segurança alimentar e de tédio profundo. Sentia falta de espaço para correr e de codornas e perdizes para levantar. Com a barriga cheia, Jagunço teimava em sonhar com suas caçadas.
Um dia, quando o colocaram na carroceria do caminhão de mudança, o sonhador achou que partiria rumo à liberdade. Ledo engano, para quem queria mato e espaço, foi parar em um lugar ainda mais restrito. Fez longa viagem sacolejando no meio da mobília do delegado, recém transferido para a capital. Jagunço foi descarregado junto com a mudança num bairro central.
Cidade grande, barulhenta, com carros passando o tempo todo na rua. O cachorro tinha como única distração observar o ônibus vermelho que trafegava pela via expressa. Na parada em frente de casa, a cada quinze minutos, pessoas desciam apressadas, enquanto outras se empurravam para subir no coletivo. Fora o ônibus, apenas a lavanderia no outro lado da rua lhe chamava a atenção. O motorista do carro de entrega de roupas tornou-se presença constante nos sonhos do perdigueiro.
À noite, quando o barulho na rua reduzia, Jagunço pegava no sono e sonhava com os campos e as caçadas de codornas e perdizes. Contudo, nas sextas-feiras o sonho modifica-se um pouco. O furgão branco da lavanderia parava em frente ao portão da casa. Dois assobios do motorista chamavam Jagunço para o sonho. Sem pestanejar o cachorro saltava o muro baixo da casa, e depois, abanando o rabo, embarcava na parte de trás do furgão.
Na primeira vez que o cachorro teve esse sonho, entrou vacilante, não fazia a mínima ideia para onde estava indo. À medida que o carro se distanciou de casa, o movimento, o barulho e as luzes da cidade diminuíram até desaparecerem. Depois de algumas horas o furgão parou em uma campina coberta por relva alta. Por instinto, Jagunço partiu em disparada campo adentro. As perdizes levantaram voo afugentadas pela aproximação do cachorro. Jagunço esperou pelo som dos disparos, e guiado pelo barulho da queda e pelo faro foi buscar a ave abatida. A apanhou na boca e voltou com a presa para o furgão. Após dois dias de caça, quando entrou novamente no carro, pressentiu que o sonho terminara.
Depois daquela primeira vez, toda segunda-feira o cão acordava cansado e de ressaca. Difícil suportar a rotina entediante de ficar o dia inteiro observando os embarques e desembarques de passageiros no ônibus. Só não enlouquecia porque o furgão da lavanderia, ainda sujo de lama, parado no outro lado da rua, lhe lembrava que existiam as sextas-feiras, quando à noite seus sonhos ganhavam vida.
Depois de muitos e muitos sonhos, na última vez, Jagunço sonhou um pouco diferente. Seguiu em disparada pela campina alta e empolgado com a corrida passou dos limites habituais. Entrou na boca da mata e, para seu azar, se deparou com uma jaguatirica esfomeada.
Nas segundas-feiras, os ônibus continuaram parando em frente à casa, com as pessoas subindo e descendo e como sempre, indiferentes ao seu entorno. Do outro lado da rua, o furgão da lavanderia se mantinha limpo e estacionado aguardando apenas para fazer as entregas de roupas lavadas.
コメント