Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "A viajante astral".
A viajante astral
À noite, bastava fechar os olhos e seguir viagem. Mesmo não dormindo, não podia ser classificada como uma pessoa insone. Era uma viajante astral. Durante a noite percorria rotas e chegava a destinos de difícil explicação. Sem explicações racionais ela ia e vinha nessa outra realidade. Em seus desdobramentos via coisas que os outros não conseguiam ver. E fazia coisas tão impressionantes, quanto difíceis de acreditar terem sido feitas por ela.
Algumas vezes, a moça dormia, ou melhor, fechava os olhos em Campo Grande e ia parar em “alguma Machu Picchu”. Chegava em meio a um cerimonial de iniciação ou de sacrifício, e participava ativamente do mesmo. Outras vezes, as viagens eram mais curtas e triviais. Ia ao quarto de um enfermo em um bairro na própria cidade. Ficava com o doente durante pouco tempo tratando-o, depois regressava para casa, e dormia o restante da noite. Era comum fazer mais de uma viagem por noite. Ela não gostava de comentar sobre suas atividades noturnas. Pois, percebia que quando contava das aventuras vividas, muitas pessoas lhe escutavam apenas por educação e provavelmente não lhe levavam a sério.
Numa dessas noites transcendentais, ela foi para um lugar que já lhe era conhecido. Estivera lá em desdobramento outras duas vezes. Havia uma alameda formada por totens com aspecto de monstros, dez de cada lado, que conduzia a um grande altar de pedras situado abaixo de uma espécie de marquise, também de pedra, encrustada na base de sólida colina. Chegou na hora em que o sacerdote imolava uma oferenda ao deus Rota. De imediato a moça, agora na qualidade de sacerdotisa, ajudou o sacerdote a terminar o garroteamento da vítima que estava sendo sacrificada. Como nas outras vezes, a moça viajante não esperou pelo término do ritual e partiu apressada em sua viagem astral para outro destino. Da “Ilha de Páscoa” ela foi ao Jardim Macaúbas.
No outro dia pela manhã, ela acordou pensativa, ainda com a viva lembrança de sua pequena e produtiva viagem ao Jardim Macaúbas. Bairro simples, próximo de sua casa e sem nenhum atrativo. A viagem ocorreu numa noite chuvosa de verão. Chegou diretamente em um quarto pequeno, onde na cama repousava uma menina de 8 anos de idade. A viajante aproximou-se da criança e entrou em seu campo vibratório. Pode sentir que o ouvido direito da menina estava inflamado. A criança passara o dia inteiro com febre alta e forte dor no ouvido. A viajante mentalizou a membrana timpânica ao mesmo tempo em que impôs ambas as mãos sobre a cabeça da criança. Depois de dois ou três minutos, percebeu que a febre e a dor se extinguiram. E para sua surpresa, a menina aliviada da dor iniciou a sonhar. A viajante, mesmo sem intenção de o fazer, assistiu as imagens mentais produzidas pela criança em seu sonho.
A menina e seu irmão mais novo brincavam num terreno baldio próximo de casa. O mato não era muito alto, e havia um grande pé de ipê com um tapete de folhas amarelas esparramadas junto ao tronco. Atraídos pela beleza da árvore, as duas crianças dela se aproximaram. Foi quando avistaram um homem com uma pá na mão revirando a terra e falando alto consigo mesmo. Em sua mente ingênua, a menina pensou que ele escondia um tesouro. Nesse momento, a viajante sentiu um aperto muito forte na garganta, como se alguém a esganasse, e saiu imediatamente do quarto da menina. A sensação de sufoco permaneceu mesmo depois de ter regressado para casa.
E pela manhã, relembrando a viagem da véspera, ainda se sentia incomodada. Pensou em procurar um ex namorado, policial civil. Desistiu da ideia, pois lembrou que durante os quase dois anos de namoro, ele nunca levou a sério quando ela contava sobre suas viagens astrais. Decidiu fazer uma denúncia anônima. Ela forneceu pelo telefone a descrição das caraterísticas da casa da menina e do terreno com o pé de ipê amarelo. Com as informações bem detalhadas, não foi difícil a polícia encontrar o terreno, porém a casa e a menina nunca foram localizadas. E ao menos para a viajante, não foi surpresa a polícia descobrir um corpo enterrado em uma cova rasa próxima ao pé de ipê amarelo.
De acordo com as investigações que se seguiram, a polícia chegou a um suspeito pelo crime. Se tratava de um delinquente que vivia de pequenos furtos. Ele possuía várias passagens pela justiça. Não foi preciso muito esforço para que confessasse seus crimes. O criminoso e a vítima integravam uma quadrilha de ladrões. Em seu depoimento relatou que houve uma contenda quanto à distribuição do dinheiro do último assalto. Como se sentia enganado pelos comparsas elaborou um plano para vingar-se de todos eles. Por fim, acabou confessando ter assassinado os três membros do grupo. Os corpos das outras duas vítimas foram localizados, enterrados em duas covas rasas, no mesmo terreno baldio do ipê amarelo. Todos os corpos tinham sinais de garroteamento do pescoço, com os ossos hioides fraturados.
O assassino, além de alcoólatra, tinha histórico de doença psiquiátrica. Durante o julgamento o homem alegou que estava muito bêbado nos dias dos crimes. Disse que escutou uma voz feminina lhe incentivando a estrangular os companheiros. Revelou ainda que os assassinatos foram realizados com o auxílio de uma cúmplice. A mulher lhe ajudava a apertar os pescoços das vítimas. Não soube dizer quem era a tal mulher, muito menos conseguiu descrever sua aparência. Essa parte da confissão não foi levada a sério. A tal cúmplice invisível devia ser apenas mais um tipo de alucinação de sua mente doentia. Com os fatos apurados o psicopata e assassino em série foi condenado e preso em um manicômio judiciário.
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