Sábado no Blog do Alex Fraga é dia de conto com o médico clínico geral, acupunturista e escritor de Campo Grande (MS), João Francisco Santos da Silva, com "A professora e os passarinhos".
A professora e os passarinhos
Há pássaros cantores e outros tantos apenas voadores. Mas, mesmo sem o dom do canto, todos têm o seu encanto próprio. Alguns possuem lindas penas, outros mostram sua exuberância no voo, e há também aqueles que vão à escola e atormentam a jovem professora. Esses últimos costumam ser desprovidos de qualidades valorizadas por humanos. De certa forma, são aves de sorte porque não despertam interesse em sua captura. Com exceção de alguns tico-ticos, pardais e bicos-de-lacre, que ás vezes tem a infelicidade de serem apanhados e levados para a escola. O bom é que depois de uma breve permanência no ambiente escolar podem regressar para a natureza, provavelmente tão ignorantes quanto antes. Talvez quem sabe, um pouco mais sabidos para não caírem novamente nas arapucas de Dórinho.
Bambu é um excelente material. Quem o criou devia estar muito inspirado. Flexível, com ele dá para fazer desde varas de pescar, até gaiolas, alçapões e arapucas. Num mundo cheio de peixes e de aves pode ser considerado um item de primeira necessidade. As professoras nos tempos de Dórinho, igual ao bambu, precisavam ser muito flexíveis e resilientes para se manterem na profissão. Porém, para Dórinho elas não apresentavam muita utilidade. O menino preferia caçar passarinhos a ir à aula. Desde cedo ele sabia que seu futuro não dependia das coisas ensinadas na escola. A professora concordava com ele. Seu futuro também não estava ali naquela escolinha para filhos de pescadores.
Menino danado, desses que não existem mais. Dórinho cresceu fazendo artes e debochando da vida. A pequena escola da vila de pescadores para ele significava apenas mais um lugar para aprontar das suas. Com 10 anos e após três reprovações, ele já estava um pouco velho para sentar na fila do segundo ano. Na escola de ensino primário, os alunos do primeiro ao quarto ano estudavam todos juntos na mesma sala e com a mesma professora. A sala de aula pequena possuía 20 carteiras dispostas em 5 fileiras. Cada ano ocupava uma fileira, com exceção do segundo ano, que por ser mais numeroso ocupava duas. A quantidade maior de alunos no segundo ano, se devia ao fato que de praxe, todas as crianças deviam terminar o primeiro ano e sair dele para dar vaga aos mais novos que ainda estavam fora da escola. A partir do segundo ano, muitos ficavam estacionados e não seguiam adiante. Só depois da segunda ou terceira reprovação os refratários estavam aptos a deixar a escola. Mas, enquanto isso não acontecia, coitada da professora. Naquela época, as professoras de ensino primário eram quase todas adolescentes. A diferença de idade entre algumas delas e seus alunos mais velhos era de poucos anos. Trabalhavam ali porque precisavam. Assim que podiam mudavam de emprego ou casavam.
Dórinho fazia arapucas de bambu e capturava sabiás, saíras, tiés, coleirinhos e outros pássaros cantores. O menino possuía bom gosto para música. Adorava o canto de seus sabiás e coleirinhos. Em sua coleção particular tinha dezenas de gaiolas de bambu feitas por ele mesmo. E em cada gaiola um desses cantores da natureza. Nunca matou passarinho, mas, egoisticamente os privava da liberdade para atender suas predileções musicais. Os demais passarinhos apanhados e que não possuíam gogó para o canto, ele os soltava. Porém, ainda assim, fazia com requintes de traquinagem. Já que seus pais lhe obrigavam a ir à escola, os passarinhos antes de ganharem a liberdade também tinham que provar essa experiência desagradável.
O menino ocupava boa parte de seu tempo com os passarinhos. Divertia-se com eles que serviam para amenizar seus dois maiores problemas na vida. A escola e a professora. Elas não tinham culpa, mas, seria melhor que nem uma nem outra existisse. Esse era outra questão que a professora concordava, ainda que parcialmente, com o menino. Porque ela, uma moça jovem e cheia de sonhos perdia tempo dando aula para um bando de crianças que não queria estar ali fazendo aquilo? No final, os meninos seriam pescadores e as meninas se tornariam mulheres de pescadores. Pensando assim, se ela fosse uma passarinha, queria ser daquelas bem feinhas, sem penas vistosas, rouca e com asas rápidas. E melhora ainda, se vivesse bem longe da casa de Dórinho, pois teria sua liberdade quase garantida.
A casa de Dórinho ficava a menos de um quilometro da escola. O caminho não passava de uma picada com o chão coberto de areia e ladeada por árvores. Todo final de tarde o menino armava suas arapucas ao longo da picada. Pela manhã, enquanto caminhava sem a mínima pressa para chegar na escola, a cada arapuca desarmada ia coletando o resultado da caçada noturna. Pegava os pequenos passarinhos e os enfiava nos bolsos, levando-os escondidos para a sala de aula. Quando a professora se virava para escrever no quadro negro e dava as costas para a turma, Dórinho saltava todos as aves de uma só vez. Então, em meio a revoada de pássaros dando rasantes sobre sua cabeça, a professora novamente pensava o que ela estava fazendo ali? Porque não casava logo com o namorado pescador? E nesse momento, a professora e Dórinho compartilhavam o mesmo pensamento. Que inveja desses pássaros que podiam sair voando pela janela da sala. Ela sabia que nem valia a pena gastar saliva perguntando quem tinha sido o autor da peraltagem.
Dórinho largou a escola sem terminar o segundo ano primário. Foi ser pescador igual ao pai. Cresceu, tornou-se adulto e casou. Continuou gostando de pássaros, e passou a gostar de mulheres e de bebida também. Quando não estava pescando, estava cuidando de seus passarinhos engaiolados. Quando não estava em casa, estava no boteco bebendo ou se aventurando com outras mulheres. Eterno caso perdido. Coitado de todas as mulheres que passaram em sua vida. Meio cabeça oca e sempre alcoolizado. Entre suas muitas façanhas, um dia a esposa lhe deu a incumbência de ir ao cartório para registrar o nascimento da filha com o nome de Lucíola Maria. Horas depois, ele voltou para casa com uma certidão em nome de Iraúna Saíra. Talvez tivesse expectativa que a filha fosse cantora.
A professora também se casou e trocou a escola e os alunos por outra vida. Contudo, não levou muito tempo para se arrepender amargamente do casamento. Seu marido seguia o típico padrão local. Pescador, semianalfabeto, beberrão e mulherengo. Agora, mulher de pescador, ela sentia saudades dos tempos de professora em que os pássaros revoavam sobre sua cabeça. Pensava ser muito melhor quando eles ainda são crianças e apenas soltam passarinhos em sala de aula. Depois de adultos, eles libertam os demônios e engaiolam todos os sonhos.
❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️
Muito bom esse texto.
Luciana Lima - Corumbá MS