MILLÔR E DEUS
Osmar Resende
"O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde." (Millôr Fernandes)
Ao celebrarmos o Centenário de Millôr Fernandes, lembramos sua multifacetada imagem de escritor, ilustrador, dramaturgo, tradutor.
Conhecido, sobretudo, pelo seu humor gráfico, sarcástico, irônico e até mesmo cáustico. Se definia como um “livre atirador”.
Carioca do Meier, atleta, coautor de frescobol, pescador de atum.
Considerado por uns como subversivo, por outros como reacionário, dependendo das circunstâncias, de suas colocações.
Circulou pelas redações de O Cruzeiro, Veja, Isto é, Jornal do Brasil, Pasquim.
Participou da “Patota do Pasquim”.
Ao perder sua mãe aos 11 anos de idade, mais tarde confidenciou: "Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia".
Não vamos escarafunchar a vida de Millôr, pois, como todo ser humano, tem suas contradições. Mas esta frase nos faz pensar profundamente.
No nosso dia a dia, podemos constatar que as pessoas vivem suas contradições internas. Na minha experiência de WhatsApp, sobretudo em meus grupos familiares, quando o negócio aperta apelam para Deus. A frase mais frequente: “Deus está no controle”.
E muitas pessoas, por qualquer motivo, exclamam: “Graças a Deus”. Aqui em Guarapuava, no interior do Paraná, onde resido atualmente, as pessoas, não sei se por reverência às minhas cãs, me pedem com as mãos postas a bênção e gentilmente lhes digo: “Deus te abençoe”.
Concordo com Millôr quando diz que “o cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde”.
Existem os ateus teóricos e os ateus existenciais. Porque ateu em princípio é aquele que nega a existência de Deus. E outro é aquele que vive como se Deus realmente não existisse.
Mas pra mim a questão fundamental é a imagem que se tem de Deus. Ao longo da história, muita gente se converteu a partir do momento em que teve uma iluminação divina e pôde captar algo da essência de Deus. Ou a revelação do próprio Deus.
Muita gente se converteu num leito de hospital, diante da dor, do sentimento de impotência, da iminência da própria morte, como São Camilo de Lelis que celebramos estes dias.
Que mais misterioso que a morte? E o pós-morte?
Ultimamente tenho refletido muito sobre o sentido da vida, da existência... Esses dias Jesus conversava com Deus Pai: “Te louvo, ó Pai, por que revelaste estas coisas aos simples e humildes” (cf Mt 11, 25). Sim. Só os simples e humildes podem captar os sinais de Deus. Os arrogantes e prepotentes ficam cegos diante da luz divina, enquanto os simples e humildes se transfiguram e irradiam a sabedoria divina. Tornam-se pessoas iluminadas.
Mas, além do mais, acredito que o ser humano no instante final de sua existência tem um encontro face a face com Deus. E aí se revela o grande mistério. Enquanto estamos nesta terra, caminhamos no escuro, com todo cuidado, às apalpadelas, tentando vislumbrar alguma luz, alguma fagulha do grande mistério.
Quando miro o macrocosmos e mergulho no microcosmos uma centelha divina se acende em minha mente e aquece meu coração, profundamente.
Nada melhor que contemplar um céu estrelado lá no interior, e pensar nos milhares, milhões de estrelas, astros, planetas, satélites, em movimento contínuo, galáxias...
E quando a ciência, os microscópios potentes nos mostram o funcionamento das células, das minúsculas partículas de qualquer ser?!...
A beleza dos pássaros, das borboletas, da natureza nos encanta. Ah! Guimarães Rosa dizia por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967: “as pessoas não morrem, ficam encantadas”.
Difícil e mesmo impossível imaginar o que se passa na mente de alguém que se diz ateu. Não podemos condenar ninguém por suas convicções. Mas parece inverossímil. Por outro lado, a noção, a concepção de Deus, é algo que se adquire com o tempo, com o amadurecimento, com a reflexão. E no mundo agitado de hoje, as pessoas não querem pensar, refletir, meditar. Deixam a vida levar. Simplesmente levar.
Ironicamente, às vezes, se diz que um ou outro ateu assim se identifica: “sou ateu, graças a Deus.” Seria o máximo da contradição. Seria um ateu inconsequente.
Mas voltando à frase de Millôr, “o cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde”, revela a fragilidade do ser humano. A cada dia vemos anunciar a morte de famosos: artistas, esportistas, etc. E as funerárias estão sempre em ação. Coroas de flores são colocadas ao lado dos caixões. Os leitos dos hospitais estão geralmente lotados. As UTIS sempre funcionando. Só nos resta aceitar a realidade, nossa pequenez, diante do mistério de Deus.
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